A casa onde nasci e fui criado ainda está de pé.
Na verdade eu nasci para a vida num casebre, na roça;
Mas acho que se nasce para o mundo quando se forma lembranças,
Onde se faz acontecer algo para ser lembrado. Isso.
Minha mãe me deixava à sombra do cafezal e cantava
Enquanto colhia café. Os galhos de grãos maduros eram raspados diretamente num balaio, os grãos secos geralmente caiam sozinhos, era o meu trabalho catá-los. Depois espalhávamos tudo, no terreiro, ao sol. Era divertido pisá-los!
O doce travo de café maduro de vez em quando me leva àqueles dias e colheita. É um gosto estranho até de ser lembrado; mas eu gosto. Aí eu fico recordando detalhes, coisas sem nenhuma importância, sem influência para os meus dias atuais, coisas fúteis que vem e vão como uma brisa de nostalgia.
Eu gostava de ver os sabiás; suas corridinhas rápidas e curtas, e o vôo rasteiro.Há uma época no ano em que eles não cantam. É como se ocultassem o canto, em ensaios sigilosos, para se apresentarem impecáveis no começo das águas. E é nesse período de impecabilidade na expressão da alegria que eles se acasalam, e ao nascer os filhotes aperfeiçoa-se o concerto. É também de um entendimento irreprochável de voz entre as insaciáveis criaturinhas e os famintos tenores. Para cada afastamento um comportado silêncio, a cada viagem uma minhoca, e aquela euforia, a cada pouso uma ária para maior encanto da ópera.
Acho que é certo dizer que os bichos se amam e os homens trepam quando se aliam para o prazer, ou procriar. É notável que os bichos se guiem tão bem! Eles acasalam com o sexo oposto, sempre; o homem às vezes erra. Ignoremos!
O tiziu, negrinho simpático, eu adorava vê-lo cantar; ele dá um grito e pula e cai no mesmo lugar no galho.
Eu gostava de observar o comportamento das aranhas naquele emaranhado trigonométrico e complexo das teias. As moscas eram presas fáceis para a degustação lenta.
Eu temia os enormes marimbondos e o esquisito besouro negro: o rinoceronte.
A galinha d’angola às vezes pisava seus próprios pintinhos xadrezinhos, tantos eram que a acompanhava. E os teiús sempre atacavam; Chupavam os ovos, comiam os pintos e chicoteavam o galo e as galinhas. Pelo barulho minha mãe já sabia: “o teiú ta no quintal!”.
Minha mãe cantando, ajeitando o lenço na cabeça, cobrindo os cabelos brancos... Eu já a conheci assim: cabelos grisalhos, orvalhados, como gotas de sereno no gramado nas manhãs de inverno.
Todos os dias nós tínhamos visitas. Todas lhe pediam a bênção. Quase todos eram seus afilhados. De quase todos ela fizera o parto. A todos considerava seus filhos.
Ela parava o trabalho e ia fazer café novo. Como é bom o cheiro de café sendo coado! No cesto nunca faltava quitanda: biscoito de polvilho, bolo de fubá, rosquinhas...Huuumm! Esse cheiro de cozinha mineira!
Os ares interioranos é um alento mágico na minha memória.
Ela era franzininha, frágil, sofria de asma e cheirava a poejo e hortelã, mas não se entregava à fraqueza, não sossegava um minuto. Com ervas que ela mesma cultivava ou colhia no mato, ela preparava remédio para as pessoas, principalmente para os bebes e as mães após o parto. Quando ela saia para fazer parto eu ficava triste, sentia uma angústia que ainda hoje não consigo dar nome. E quando caia uma tempestade eu tinha medo dos rios cheios, das pinguelas velhas, da sua asma... Eu tinha medo que ela morresse, eu tinha medo do mundo, da vida sem ela; eu tinha medo da solidão. Mas eu não falava pra ninguém, eu sempre tive medo de falar da morte. Achava que só era decente falar de coisas que alegrasse o coração.
A cama parecia ter espinhos. Eu sentia frio, tinha pesadelos e fazia xixi na cama. A noite parecia interminável. Surgiam estranhas imagens na parede que faziam negaças mexendo comigo. Mas entre os fantasmas havia um que eu não temia, acho que porque ele apenas me olhava e sem sorrir me sorria; até que o quarto tomava um tom azulado, e na parede uma luz lilás acendia, vinha um perfume, de poejo e hortelã, ou rosa branca e alecrim, vinha como um vento numa sombra transparente e me cobria.
Quando ela retornava, do modo com que me olhava, eu sabia que ela dizia: “Eu sei, eu estava aqui, o tempo todo, eles vinham e eu te escondia”.
Não sei porque nunca falamos sobre isso. Era tão íntimo que só nosso silêncio sabia. Também nunca dissemos: _Eu te amo_ em voz alta.
Agora eu digo a ela todos os dias: “Mãe, eu te amo!” E ela não pode me responder, talvez não possa me ouvir; mas sinto que se emociona comigo, em mim, pois ainda sinto seu perfume, o cheiro de remédio, de flores, de quintal, de café, de jardim... E ainda hoje, quarenta e tantos anos, só com a cabeça nos seus seios é que consigo dormir.
Acho que isso é que é ser eterno: Ser verdade, invisível, mas transcendente em quem amamos, e vivermos eternos como éramos, onde estávamos, parte da natureza e do tempo.
Ah! Ela ia adorar você, tenho certeza disso.
Você precisa ver; melhor que o cheiro de café, e mais belo e excêntrico que a cor e o doce travo do grão, são as flores alvas, como manto do cafezal, e o canto misterioso de um pássaro que revoa um certo coração... Repleto de amor.
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